A eleição de José Antonio Kast à Presidência do Chile, confirmada neste domingo (14), marca uma inflexão profunda e preocupante na política do país. Rotulado por aliados e críticos como o “Bolsonaro chileno”, o ultraconservador venceu o segundo turno contra a candidata de esquerda Jeannette Jara com 58,18% dos votos, em uma disputa marcada pela polarização e por discursos que resgatam, sem pudor, o legado da ditadura de Augusto Pinochet (1973–1990).
Com quase 100% das urnas apuradas, o resultado confirmou o que as pesquisas já indicavam: uma guinada à direita que coloca no poder o político mais alinhado ao autoritarismo desde o fim do regime militar. Kast assume em março de 2026, substituindo o atual presidente Gabriel Boric, e herda um país que ainda carrega feridas abertas de seu passado recente.
Advogado, católico e de origem alemã, Kast é filho de um ex-soldado do exército nazista de Adolf Hitler. A ligação com regimes autoritários não é apenas biográfica. Ao longo de sua trajetória política, ele nunca escondeu a simpatia pelo período de Pinochet e já admitiu que, na juventude, atuou ativamente na campanha pela permanência do ditador no poder durante o plebiscito de 1988 — aquele que, finalmente, abriu caminho para a redemocratização do Chile.
Durante a campanha deste ano, o tema da ditadura voltou com força ao centro do debate. No confronto final contra Jeannette Jara, Kast defendeu a redução de penas para pessoas condenadas por crimes cometidos durante o regime militar, especialmente policiais e militares idosos ou em estado terminal. Na prática, a proposta abre brechas para a libertação de responsáveis por tortura, assassinatos e desaparecimentos forçados.
Segundo dados oficiais, mais de 3,2 mil pessoas foram mortas ou desapareceram durante a ditadura de Pinochet, além de milhares de presos políticos, exilados e vítimas de tortura. Tratar esses crimes como algo passível de “reavaliação” não é apenas uma escolha política: é um ataque direto à memória, à justiça e às vítimas do terrorismo de Estado.
A vitória de Kast levanta uma pergunta incômoda, mas inevitável: os chilenos sentem saudades da ditadura? Saudades do silêncio imposto pela força, da censura, das prisões clandestinas, dos corpos jogados em valas comuns? A “ordem” defendida por setores da extrema direita sempre teve um custo alto — pago com sangue, medo e supressão de direitos.
O avanço desse discurso não ocorre por acaso. Ele se alimenta do medo, da insegurança e da frustração social, mas também da incapacidade das forças democráticas de disputar narrativas sem parecer relativizar problemas reais. Ainda assim, há uma linha que não pode ser cruzada: justificar ou suavizar crimes contra a humanidade nunca foi e nunca será solução.
O Chile, que por décadas foi referência internacional em políticas de memória, verdade e reparação, agora vê parte de sua sociedade flertar com o apagamento histórico. A eleição de José Antonio Kast não reescreve os horrores do passado, mas escancara que a disputa pela memória segue viva — e que há quem esteja disposto a repetir as atrocidades em nome de uma falsa promessa de ordem e progresso.


