Conhecidos por discursos inflamados contra o uso de recursos públicos para a cultura, bolsonaristas agora protagonizam um curioso giro retórico. O deputado federal Mário Frias (PL-SP), ex-secretário de Cultura do governo Jair Bolsonaro e um dos principais críticos do financiamento estatal a produções artísticas, destinou R$ 2 milhões em emendas parlamentares para uma ONG ligada diretamente à produtora do longa-metragem The Dark Horse, filme inspirado na trajetória do ex-presidente.
O recurso saiu do Orçamento da União e foi repassado ao Instituto Conhecer Brasil, presidido por Karina Ferreira da Gama — que, por coincidência nada irrelevante, também é diretora da Go Up Entertainment, empresa responsável pela produção do filme. Ou seja, dinheiro público financiando, ainda que de forma indireta, uma obra cinematográfica dedicada à exaltação do principal líder político do campo ideológico que sempre atacou a chamada “mamata cultural”.
Os valores foram distribuídos por meio de convênios com ministérios federais, sob a justificativa de projetos sociais, como o programa “Lutando pela Vida”, que prometia aulas de jiu-jítsu para crianças no interior paulista. No papel, uma iniciativa social. Na prática, a ONG acumulou ao menos R$ 1 milhão sem prestação de contas, segundo registros oficiais, além de contratos que já ultrapassam R$ 720 mil.
A mesma ONG também foi contemplada com um contrato de R$ 108 milhões com a Prefeitura de São Paulo para a instalação de pontos de Wi-Fi em regiões periféricas — um acordo que já levantou suspeitas de irregularidades e entrou no radar de órgãos de controle. Ainda assim, a entidade continuou recebendo repasses públicos generosos.
Procurado, o deputado Mário Frias não respondeu aos questionamentos. A ONG e sua presidente também preferiram o silêncio. Transparência, afinal, nunca foi exatamente uma marca registrada desse campo político quando o dinheiro público resolve caminhar na própria direção.
O filme The Dark Horse, previsto para estrear em 2026, mistura fatos reais com ficção e retrata episódios da vida de Jair Bolsonaro, incluindo o atentado sofrido em Juiz de Fora (MG). O ex-presidente será interpretado pelo ator Jim Caviezel, conhecido por papéis ligados a narrativas religiosas e conservadoras.
Durante anos, bolsonaristas atacaram leis de incentivo cultural, demonizaram artistas e trataram o financiamento público à cultura como desperdício ideológico. Agora, a prática parece ter mudado — desde que o roteiro seja favorável, o protagonista seja Bolsonaro e o dinheiro continue sendo público.
O episódio escancara uma contradição difícil de ignorar: a cultura só é problema quando não serve ao próprio projeto político. Quando serve, vira investimento.


